sexta-feira, 19 de junho de 2020

O ÚNICO MODO

Minha avó morreu
sem nunca ter andado de avião.
Sentiu dores a vida inteira,
mas estava no caixão com uma feição tão boa.
A mulher em Paris desfila de jatinho particular
pra onde quer, e vai morrer um dia
sem nunca ter feito bolas de sabão preto
ou costurado a barra da calça do marido.
Quem sabe explicar
o processo seletivo da morte?
Quem é que só vive contando com a sorte?
Acho bonito gente que chora controlado
no velório, tenho pavor de escândalo.
A lembrança da Missa de Sétimo Dia
põe bom quem quer que seja.
Quando eu morrer não quero lembrança
nem homenagem na missa,
pondo virtude onde eu tinha defeito.
Se alguém quer me dar um abraço
que dê agora, porque minha carne
é estragável e vai ficar
fria e rígida um dia.
Quando eu morrer,
o único abraço que quero
é o de Deus me pegando no colo.


- Wendel Valadares in (Re)descobir
Editora Penalux, 2015.


                                      Imagem: Wendel Valadares



Um comentário:

  1. Amigo, eu tô começando a achar que você é o meu poeta preferido, contemporâneo, materializado. A cada nova poesia sua que eu leio me sinto mais perto. De você. E de mim.

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