sexta-feira, 29 de maio de 2020

CARTA PARA A.


Querido A. 

por que é que quando escrevo faz sempre tanto tempo. parece que estou há milhões e milhões de quilômetros de distância do agora. meu pensamento viaja mais rápido que a velocidade da luz, mas não é o suficiente, eu nunca alcanço. às vezes fico a milésimos de segundos de chegar, mas aí paro ou me param ou permito que me parem, não sei. nunca sei. 
acho que não te contei sobre o ninho de passarinhos que destruíram na entrada da minha casa. faz alguns dias já, mas isso não quer se resolver dentro de mim. me cortava o coração ver os pardais voando ao redor, querendo voltar, mas sem ter pra onde, sem saber como. pensei nas tantas vezes que já quis voltar e não achei lugar. nas vezes que quis pousar porque minhas asas estavam tão cansadas, mas não achei ninho. os passarinhos continuaram, foram obrigados. eu também. 
os dias têm sido difíceis, muito compridos, pouco cumpridos. Uma espécie de sei-lá-deixa-pra-outra-hora-quando-eu-tiver-a-fim. mas, apesar da ansiedade, tenho conseguido ler um pouco, conhecer alguns poemas, ver uns filmes. ando saturado do instagram, - você também, né? - mas passo horas lá, vendo nada. por sorte, vezenquando, aparecem algumas coisas que me alegram, mas no geral tá tudo mais do mesmo - pra mim, é claro, sempre tem alguém achando tudo o máximo. sinto falta das tuas postagens. "música e literatura", eu amava. outro dia falei de você pra uma amiga, das suas resenhas. parece que você sempre sabia o que postar. admiro sua capacidade de planejar. eu sou do tipo escreve-e-posta-não-tô-nem-aí, mas na verdade eu tava sim. um martírio essa vida de agir e depois pensar, coisa de quem não sabe o que quer.
Tenho relido com mais frequência aquele texto sobre "curar o girassol nublado", sabe? então, tem dia que não cura, né. "nuvem negra" total, igual a música do Djavan. mas tem dia que cura sim, muito sol, passarinhos, um poema ou como costumo dizer pra uma amiga, pequenos salvamentos. 
gostaria de sentir que não é inútil escrever. gostaria que essa carta te salvasse. não sei de quê. não salva nem ela mesma. achei essa imagem - postada abaixo - e pensei que era nossa. a religião do girassol. tenho um livro com esse título. já te mostrei? é uma edição portuguesa. só o título já me salva. mas só o título é tão pouco, né, se a gente tem o livro inteiro?! às vezes acho que to ficando paranoico com esse negócio de reflexão. tudo me faz refletir. tudo. e, no final das contas, chego à conclusão de que tô muito ferrado. da cabeça, digo. Adélia tem um poema que diz assim: "invejo o bruto, o que enfia tudo no de todo mundo e não tem medo de Deus". ah, como invejo, porque tô sempre sentindo tanto. desculpe a interrupção abrupta, mas essa carta não tem final, eu só precisava escrever mesmo. sinto muito. 


                                    Imagem: © Joel Robison

quinta-feira, 21 de maio de 2020


"Tu vens, tu vens
eu já escuto 
os teus sinais..."


(Anunciação - Alceu Valença)

                                  Imagem: © Benoit Courti

"A voz do anjo sussurrou no meu ouvido":
- há de haver o tempo das flores.

As azaleias vão colorir as estradas
e as buganvílias vão ensinar ao vento
que é tempo de chegar. 

Os ipês vão desenhar setembros 
por todo o calendário. 

E quando o amanhã for "agora"
minha boca vai derramar margaridas 
nos teus ouvidos
e do teu peito brotarão lindos lírios.

Por dentro uma flor desabrocha
e, apesar do frio, faz sol. 

(Wendel Valadares)

sexta-feira, 15 de maio de 2020

LENDO MANOEL DE BARROS

eu queria fazer um silêncio tão grande
quanto o tamanho da minha 
insignificância. 

                                Imagem: © Krasimir Matarov

domingo, 3 de maio de 2020

DESCOBRIMENTO

                                                          

Dom que desejei ardentemente
e lamento não tê-lo ganhado
é o de cantar. 
Era aprazível meu desejo
de sair por aí musicando
qualquer palavra que saltasse
à minha boca, mas Deus
pôs ritmo nas minhas mãos.
Me deu um punhado de versos
e me mandou ser feliz
do jeito que eu desse conta.
Vocação é genética?
Minha avó fazia bolas de sabão preto
e ia pro córrego bater roupa na pedra,
depois voltava com a bacia de roupa
na cabeça, cantando os hinos
de São Sebastião.
E o que eu herdei disso tudo?
Só o olho maior que a barriga,
vendo fartura na miséria.
Aprendi a fiar palavras
e com elas quero tecer
uma imensa colcha de retalhos
para apaziguar o frio da alma
e cobrir o mundo de amor.
A cada novo verso que desabrocha
eu me (re)descubro. 

(Wendel Valadares no livro (Re)descobrir)